Erros mais comuns no trespasse
O trespasse — a transmissão de um estabelecimento (clientela, nome, equipamentos, contratos em execução, etc.) — é uma operação relativamente comum, mas com armadilhas que podem destruir valor, desencadear litígios e atrasar (ou inviabilizar) o fecho. Abaixo mapeio os erros mais frequentes e um plano prático para os evitar, com checklists, modelos e cláusulas-tipo que pode adaptar.
Nota: este conteúdo é informativo e não substitui aconselhamento jurídico ou fiscal qualificado.
1) Não notificar o senhorio / ignorar cláusulas do arrendamento
Em muitos trespasses, o direito de usar o imóvel arrendado é o ativo crítico. Ceder a posição no arrendamento sem respeitar o contrato (ou a lei aplicável) pode dar ao senhorio fundamento para resolver o contrato ou recusar a transmissão.
Riscos comuns
- Cláusulas que proíbem ou condicionam a cessão/subarrendamento.
- Prazos de notificação ignorados.
- Existência de direito de preferência do senhorio ou de consentimento prévio.
- Incumprimento de obrigações pendentes (rendas, obras, caução).
Como evitar
- Rever o contrato de arrendamento: identificar cláusulas de cessão, subarrendamento, preferência, consentimento e prazos.
- Enviar notificação formal ao senhorio, dentro do prazo contratual, com prova de receção (carta registada/PEC ou outro meio previsto).
- Confirmar direito de preferência e o respetivo procedimento (valor, prazo de exercício, forma).
- Regularizar pendências (rendas, indemnizações, cauções) antes da transmissão.
Checklist
- Cláusulas de cessão lidas e interpretadas
- Minuta de notificação preparada e enviada com prova
- Preferência: prazo, preço e condições comunicados
- Adenda/consentimento do senhorio obtido, se aplicável
Modelo abreviado de notificação
Assunto: Comunicação de trespasse e cessão da posição contratual no arrendamento
Exmo.(a) Senhor(a) [Nome do Senhorio],
Nos termos da Cláusula [X] do Contrato de Arrendamento de [data], vimos comunicar a nossa intenção de trespassar o estabelecimento sito em [morada] a favor de [nome/NIF].
Caso exista direito de preferência, vimos igualmente dar-lhe conhecimento do preço e condições do negócio: [condições].
Solicitamos, se aplicável, o vosso consentimento, a emitir até [data], bem como indicação de IBAN para eventual atualização de caução.
Com os melhores cumprimentos,
[Assinatura]
2) Subavaliar ou sobreavaliar ativos
Negócios fracassam quando o preço não reflete o estado real dos ativos (equipamentos, inventário, marcas, software, carteira de clientes).
Riscos comuns
- Inventários “de gaveta” sem contagem física.
- Equipamentos com avarias latentes ou obsolescência técnica.
- Marcas e softwares sem registos/vigência.
- Stock com quebra, prazo expirado ou rotatividade baixa.
Como evitar
- Inventário datado e valorado por categoria (custo, custo de reposição, valor realizável).
- Perícia técnica a máquinas, TI e instalações (relatório fotográfico, nº de série, horas de uso, manutenção).
- Considerar obsolescência e estado de conservação (tabelas de depreciação e eventuais imparidades).
- Verificar intangíveis: registos de marca/patentes, contratos de software/licenças, titularidade de código.
Checklist
- Inventário físico assinado por ambas as partes
- Relatórios de peritagem e manutenção anexos
- Certidões/registos de intangíveis conferidos
- Ajustes de preço por stock lento/obsoleto definidos
3) Anunciar sem confidencialidade
Uma divulgação precoce pode assustar clientes, fornecedores e colaboradores — e entregar informação estratégica a concorrentes.
Como evitar
- NDA (acordo de confidencialidade) antes de partilhar qualquer informação não pública.
- Teaser cego e “no-name” nas primeiras abordagens; revelar nome/morada só após qualificação do comprador.
- Plano interno de comunicação (quem diz o quê, quando, a quem). Defina marcos: assinatura, “Day-1”, integração.
Pontos essenciais de um NDA
- Definição ampla de “Informação Confidencial”.
- Uso limitado ao propósito de avaliação.
- Proibição de contacto direto com staff/fornecedores sem autorização (“no poach / no contact”).
- Devolução/eliminação de dados.
- Prazo de confidencialidade pós-negócio.
4) Licenças e alvarás em falta ou intransferíveis
Muitos setores exigem licenças nominativas (ambiente, segurança alimentar, saúde, SCIE, industrial, transportes, etc.). Nem todas são transmissíveis.
Como evitar
- Mapear todas as licenças/alvarás: entidade emissora, nº, validade, titular, condições de transmissibilidade.
- Prever condições suspensivas no contrato: o negócio só fecha após (i) emissão de nova licença ou (ii) autorização de transferência.
- Definir responsabilidades por taxas, projetos, obras de adaptação e prazos (“long stop date”).
- Planos de contingência: operação faseada, cessão temporária de exploração, ou encerramento ordenado de áreas sem licença.
Checklist
- Matriz de licenças por estabelecimento/processo
- Parecer sobre transmissibilidade e prazos administrativos
- Cláusula suspensiva + long stop date
- Responsáveis e orçamento para regularização
5) Descurar trabalhadores na transmissão de estabelecimento
Na transmissão de unidade económica, direitos e obrigações laborais transferem para o adquirente. Falhar a informação e consulta pode gerar nulidades, coimas e contencioso.
Como evitar
- Analisar se há “unidade económica” (meios organizados que mantêm identidade: pessoas, ativos, processos).
- Cumprir deveres de informação e consulta a trabalhadores/representantes com antecedência razoável, indicando data, motivos, consequências jurídicas, sociais e económicas, e medidas previstas.
- Manter condições contratuais: antiguidade, retribuição, benefícios e instrumentos de regulamentação coletiva.
Boas práticas
- Q&A para gestores de linha;
- Carta de “boas-vindas” do comprador;
- Plano de harmonização futura (sem redução de direitos).
6) Misturar passivos não transferíveis (confundir trespasse com cessão de quotas)
No trespasse transfere-se o estabelecimento/atividade; na cessão de quotas/ações, transfere-se a sociedade (com todos os seus passivos). Confundir regimes é receita para surpresas fiscais, laborais e financeiras.
Como evitar
- Delimitar no contrato o que é transferido: lista de ativos (corpóreos/incorpóreos), contratos, posições, arrendamentos, licenças.
- Esclarecer passivos que ficam no vendedor (em especial fiscais, bancários, litigância, garantias prestadas).
- Mapa de contratos: quais exigem consentimento do outro contratante; quais não são cedíveis.
- Cláusulas de não assunção de passivos + indemnizações e garantias (reps & warranties) com limites, franquias e prazos.
7) Falta de dados financeiros fiáveis
Sem contas fiáveis, o comprador desconta preço ou abandona.
Como evitar
- Contas fechadas e conciliadas (banco, clientes, fornecedores, impostos) com demonstrações por competência.
- Relatórios por centro de custo/produto e por loja/unidade; métricas de margem, churn, LTV, CAC (se aplicável).
- Evidência documental: faturas, recibos, contratos, extratos, balancetes históricos (3–5 anos).
- Normalizações: retirar itens não recorrentes, correções de gestão, e apurar EBITDA normalizado.
- Se possível, revisão por terceiro (contabilista revisor) ou quality of earnings light.
Checklist
- Balancetes mensais e demonstrações assinadas
- Conciliações e inventários com suporte
- Relatórios de performance por unidade/linha
- Memorando de normalizações e premissas
8) Não planear a transição
Sem plano de transição, a continuidade operacional sofre: perde-se conhecimento, clientes e fornecedores.
Como evitar
- Definir período de apoio do vendedor (ex.: X semanas de acompanhamento, Y horas/semana, presencial/remoto, remuneração).
- Manuais e SOPs (processos críticos: compras, caixa, manutenção, qualidade, TI, compliance).
- Apresentações a stakeholders críticos (top 20 clientes/fornecedores, banco, senhorio, regulador).
- Plano Day-1 / 30-60-90: acessos, listagens, comunicações, metas e responsáveis.
Cláusula-tipo (apoio do vendedor)
O Vendedor assegurará, por [90] dias após o Fecho, apoio operacional de até [12] horas/semana, sem poderes de representação, para transferência de conhecimento, incluíndo formação a colaboradores indicados pelo Comprador. A contraprestação é de €[x]/hora + IVA.
9) RGPD ignorado na passagem de bases de dados
Clientes, leads, colaboradores e fornecedores = dados pessoais. A transferência sem base legal e sem informação aos titulares pode originar coimas e obrigações de correção.
Como evitar
- Identificar a base legal para a transferência:
- Execução contratual (continuidade do serviço) ou
- Interesse legítimo (com teste de ponderação documentado).
- Atualizar políticas e avisos de privacidade: informar identidade do novo responsável pelo tratamento, finalidades e direitos.
- Mapear subcontratantes (processadores) e celebrar DPAs (contratos de tratamento).
- Minimização e retenção: transferir só o necessário; aplicar prazos de retenção.
Checklist
- Registo de atividades de tratamento atualizado
- Notas/avisos a clientes/fornecedores preparados
- DPAs com processadores verificados
- Evidência do teste de interesse legítimo (se usado)
10) Preço sem estrutura
Um preço “liso” pode ser injusto para uma das partes quando há incerteza operacional.
Como evitar
- Earn-out: parte variável do preço indexada a métricas objetivas (receita, EBITDA, gross margin) por um período (12–36 meses).
- Definir métricas, fórmulas, caps/floors, auditoria e acesso à informação.
- Vendor loan (seller financing): parcela diferida, com juro, plano de amortização, garantias (penhor de quotas/ativos).
- Ajuste por stock e fundo de maneio: fixar nível-alvo e mecanismo de correção post-closing.
- Escrow/holdback: parte do preço retida para cobrir indemnizações.
Exemplo de fórmula simples de earn-out
Earn-out anual = 20% × (EBITDA auditado - €300.000), limitado a €150.000/ano, por 2 anos.
Roteiro prático (passo a passo)
Fase 0 — Preparação
- Diagnóstico jurídico e financeiro do estabelecimento.
- Organização de data room (contratos, licenças, RH, fiscal, contabilidade, TI).
- Minutas-base: NDA, teaser, checklist de due diligence.
Fase 1 — Estruturação
- Escolha entre trespasse vs share deal (com matriz de riscos).
- Mapa de ativos/passivos incluídos e excluídos; consentimentos necessários.
- Planeamento de notificações (senhorio, reguladores, trabalhadores).
Fase 2 — Negociação
- Term Sheet e estrutura de preço (earn-out, vendor loan, ajustes).
- Cláusulas suspensivas (licenças, financiamentos).
- Reps & warranties com limites e prazos.
Fase 3 — Fecho e Transição
- Assinatura e condições de closing (escrow, pagamentos, entregas).
- Plano Day-1 e comunicação a stakeholders.
- Período de apoio, formação e governança pós-fecho.
Cláusulas-tipo úteis (para adaptar)
Delimitação do objeto
São transmitidos: (i) equipamentos constantes do Anexo I, (ii) inventário constante do Anexo II, (iii) carteira de clientes conforme Anexo III, (iv) marcas e demais direitos de propriedade intelectual do Anexo IV, (v) posição contratual nos contratos do Anexo V. Excluem-se todos os demais ativos e quaisquer passivos não expressamente assumidos.
Não assunção de passivos
O Comprador não assume quaisquer passivos do Vendedor anteriores ao Fecho, incluindo de natureza fiscal, laboral, ambiental, financeira ou litigiosa, salvo os expressamente identificados no Anexo V.
Ajuste por stock
O preço será ajustado euro por euro pela diferença entre o valor do stock na data de Fecho e o Stock-Alvo de €[X], conforme contagem conjunta e critérios de valorização do Anexo II.
Condição suspensiva (licenças)
A eficácia do presente contrato fica condicionada à obtenção, até [data long stop], das autorizações e licenças enumeradas no Anexo VI, sob a responsabilidade de [parte], sem as quais o estabelecimento não pode operar legalmente.
Quadros-resumo “Evite:”
- Não notificar o senhorio / ignorar cláusulas do arrendamento
Evite: rever contrato; enviar notificação formal com prazo e prova de receção; confirmar direito de preferência. - Subavaliar ou sobreavaliar ativos
Evite: inventário datado e valorado; perícia a equipamentos; considerar obsolescência e estado de conservação. - Anunciar sem confidencialidade
Evite: usar NDA; ocultar nome/morada até qualificar o comprador; comunicar internamente plano de comunicação. - Licenças e alvarás em falta ou intransferíveis
Evite: mapear licenças e sua transmissibilidade; prever condições suspensivas no contrato. - Descurar trabalhadores na transmissão de estabelecimento
Evite: analisar “unidade económica”; cumprir informação e consulta; manter condições contratuais. - Misturar passivos não transferíveis (confundir trespasse com cessão de quotas)
Evite: delimitar no contrato o que é transferido; esclarecer passivos que ficam no vendedor. - Falta de dados financeiros fiáveis
Evite: contas fechadas e conciliadas; relatórios por centro de custo/produto; evidência documental. - Não planear a transição
Evite: definir período de apoio do vendedor; manuais; apresentações a stakeholders críticos. - RGPD ignorado na passagem de bases de dados
Evite: base legal para transferência (interesse legítimo / execução contratual); atualizar políticas e avisos. - Preço sem estrutura
Evite: considerar earn-out, vendor loan e ajuste de preço por stock.
Checklist final (imprimir e marcar)
- Contrato de arrendamento analisado + senhorio notificado
- Inventário e peritagens concluídos
- NDA assinado e estratégia de comunicação definida
- Licenças mapeadas + condições suspensivas incluídas
- Trabalhadores informados/consultados e plano de integração
- Matriz de ativos/passivos incluídos/excluídos
- Dossier financeiro (balancetes, reconciliações, relatórios) pronto
- Plano Day-1 e 30-60-90 + apoio do vendedor acordado
- RGPD: base legal, avisos, DPAs, minimização
- Preço: ajustes, earn-out, vendor loan, escrow e prazos