Trespasse em Portugal em 2026: mudanças, tendências e novas exigências (guia aprofundado)

Trespasse

O trespasse (transmissão onerosa de estabelecimento) continua a ser a via preferida para vender um negócio em funcionamento — sobretudo em comércio, restauração, serviços pessoais e industriais ligeiros. Em 2026, o contexto legal e de mercado exige mais preparação, transparência fiscal e gestão laboral rigorosa. Abaixo, aprofundamos cada área crítica.


1) O que é o Trespasse em 2026 — enquadramento e limites

Definição essencial
Trespasse é a transmissão do estabelecimento (unidade económica organizada para exploração de atividade), incluindo clientela, goodwill, equipamentos, contratos e licenças necessárias ao funcionamento. Distingue-se de:

  • Venda de ativos isolados: aliena-se bem a bem (máquinas, viaturas, marcas), sem continuidade do negócio.

  • Cessão de quotas/ações: transfere-se a titularidade da sociedade (com todos os ativos e passivos).

Porque importa a distinção?

  • Regras fiscais (IVA não sujeito em unidade económica autonoma vs. IVA em ativos avulsos).

  • Continuidade de contratos de trabalho e arrendamento.

  • Responsabilidades e passivos que transitam (ou não) para o comprador.

Limites práticos

  • Sem a passagem da clientela/atividade e dos elementos essenciais, o negócio pode não caracterizar “trespasse” e cair em venda de ativos — com impactos fiscais e contratuais diferentes.

Checklist rápido (qualificação do negócio como trespasse)

  • Há continuidade operacional no dia seguinte?

  • Contratos essenciais (fornecimento, POS, software, licenças) transitam?

  • Existem equipa e processos que se mantêm?

  • O arrendamento (se houver) acompanha o estabelecimento?


2) Principais mudanças (2025–2026) — aprofundamento

a) Trabalhadores: reforço da transparência e fiscalização

Quando há transmissão de estabelecimento, os contratos de trabalho transitam para o adquirente, preservando antiguidade e direitos. Em 2026, destaca-se:

  • Dever de informação prévia aos trabalhadores/representantes (conteúdo, data prevista, motivos, consequências jurídicas/económicas).

  • Mapas de pessoal e listagem de créditos laborais devem ser claros (férias vencidas, proporcionais, prémios de desempenho, diuturnidades).

  • Planos de benefícios (ex.: seguro saúde) e instrumentos de regulamentação coletiva aplicáveis devem ser comunicados.

  • A ACT intensificou auditorias em transmissões “técnicas” usadas para reduzir headcount; documentação de racional económico é recomendável.

Erros a evitar

  • Omissão de colaboradores “a prazo” ou de prestadores economicamente dependentes.

  • Falta de provisionamento para férias não gozadas e remunerações variáveis.

b) Arrendamento: comunicação formal e prazos

  • A comunicação ao senhorio deve ser prévia e documentada (preferencialmente por meios eletrónicos oficiais), com identificação do adquirente e condições do trespasse.

  • Direito de preferência pode aplicar-se (verifique o contrato e lei aplicável).

  • Garantias/fiadores: clarificar se se mantêm, se são substituídos ou reforçados.

  • Atualização de rendas: alguns contratos preveem agravamento em caso de transmissão — negociar antecipadamente.

c) Transparência fiscal e cruzamento de dados

  • A AT cruza valores de contrato com declarações de IVA/IRC, IES e, quando aplicável, imobiliário (IMI/IMT).

  • Desalinhamentos relevantes entre preço e realidade económico-financeira aumentam o risco de correções.

  • Faturação “em linha” com POS/software certificado facilita comprovação do goodwill.

Boas práticas

  • Memorando de valorização (metodologia usada, múltiplos/benchmarks, base de clientes).

  • Anexar inventários de stock e imobilizado valorizados e conferidos.


3) Tendências de mercado em 2026 — o que está a acontecer na prática

Digital-first no dealflow

  • Portais especializados e “datrooms” digitais substituem processos informais e aceleram NDA, Q&A e due diligence.

Goodwill e ativos intangíveis

  • Reputação online (reviews, rating), SEO, base de clientes, CRM e dados ganham peso real no preço.

  • Negócios com processos documentados e SOPs (Standard Operating Procedures) valorizam mais (reduzem risco de transição).

Financiamento mais seletivo

  • Bancos exigem: avaliação independente, demonstrações normalizadas, histórico de NFM (fundo de maneio), e viabilidade pós-aquisição.

Integração ESG

  • Conformidade ambiental, gestão de resíduos, segurança alimentar e fiscalidade em ordem influenciam múltiplos e apetite do comprador.


4) Exigências legais e documentação — guia operacional

Documentos essenciais

  1. Contrato de Trespasse com inventário detalhado (equipamentos, marcas, software, bases de dados, contratos incluídos/excluídos).

  2. Listagem de trabalhadores (vínculos, antiguidade, retribuição, benefícios).

  3. Regularização fiscal e contributiva (certidões AT e SS).

  4. Licenças/alvarás (SAF-T, ASAE, HACCP na restauração; licenças setoriais).

  5. Contratos críticos: arrendamento, fornecimento, manutenção, acquirer POS, telecom/IT, softwares com cessão de posições.

  6. Inventário de stock com contagem física e critérios de valorização (custo/NRV).

  7. Mapa de imobilizado (n.º de série, estado, garantia, manutenção).

  8. Propriedade intelectual (registos de marca, domínio, conteúdos).

  9. Seguro (apólices, franquias, sinistros em curso).

  10. Dados e privacidade (RGPD: bases legais, consentimentos, registros de tratamento).

Cláusulas críticas no contrato

  • Âmbito do que transita (inclui/exclui).

  • Garantias e declarações do vendedor (ausência de ónus, licenças válidas, conformidade laboral/fiscal).

  • Preço e ajustes (stock à data, correção por NFM alvo, equipamento em pleno uso).

  • Indemnização (escrow/retention) para passivos ocultos.

  • Não concorrência e não solicitação de clientes/colaboradores por X anos, proporcional e defensável.

  • Condições suspensivas (aprovação do senhorio, licenças, financiamento).


5) Fiscalidade do trespasse em 2026 — aprofundamento prático

IVA

  • Não sujeito quando há transmissão de unidade económica (atividade em funcionamento).

  • Sujeito quando a operação é venda de ativos avulsos (regra: 23%/13%/6% consoante bens/serviços).
    Atenção: tentar “mascarar” venda de ativos como trespasse pode levar a correções e coimas.

IRC/IRS (mais-valias)

  • Vendedor empresa (IRC): mais-valia = preço – valor contabilístico – custos de transação.

  • Empresário em nome individual (IRS): enquadramento no rendimento empresarial; regras de reinvestimento/coeficientes podem aplicar-se.

  • Preço ajustado por dívida assumida pelo comprador conta para a base da mais-valia.

Imposto do Selo / IMT (casos especiais)

  • Pode ser devido Selo em certas cessões contratuais (ver contrato).

  • Se existir componente imobiliária relevante e transferência indireta de controlo, verificar riscos de IMT (casos de sociedades predominantemente imobiliárias — geralmente via quotas/ações, mas afeta negociações).

Boas práticas fiscais

  • Memorando de preço com alocação por componentes (goodwill, equipamento, stock).

  • Simulação fiscal (com e sem assunção de passivos; diferentes calendários de fecho).

  • Conferir prejuízos fiscais reportáveis e limites de dedução.


6) Due diligence e preparação para venda — passo a passo

Fase 1 — Preparação (4–8 semanas)

  • Normalizar EBITDA (retirar gastos não recorrentes).

  • Quality of Earnings (QoE) simplificado.

  • Atualizar licenças, contratos e RGPD.

  • Levantamento de contingências (laborais, fiscais, sanitárias) e plano de mitigação.

Fase 2 — Comercialização (4–12 semanas)

  • Teaser anónimo + NDA.

  • Dataroom digital (financeiro, legal, operacional).

  • Q&A controlado; visitas técnicas calendarizadas.

Fase 3 — Negociação e fecho (2–8 semanas)

  • LOI (carta de intenções) com preço indicativo e condições.

  • Contrato de trespasse com anexos e escrow.

  • Inventário/stock-take no dia anterior ao fecho; ajuste de preço.

  • Comunicação a trabalhadores, senhorio e entidades (AT, SS, reguladores).

Indicadores que elevam o preço

  • Recorrência de receita (contratos, subscrições).

  • Margem bruta estável ou crescente.

  • Dependência reduzida de 1–2 clientes.

  • SOPs e equipa treinada (transição suave).

  • Reputação online positiva e base de dados de clientes conforme RGPD.


7) Avaliação e preço — como ancorar com dados (2026)

Métodos práticos

  • Múltiplos (EBITDA/Receitas) calibrados ao setor e dimensão.

  • DCF de horizonte finito com múltiplo de saída (em vez de perpetuidade), três cenários e WACC dinâmico.

  • Patrimonial ajustado quando o valor está sobretudo em ativos físicos.

Ajustes usuais ao preço

  • Dívida líquida (entra/ajusta).

  • NFM alvo (working capital peg).

  • Stock valorizado ao menor entre custo e NRV (valor realizável líquido).

  • Capex de conformidade (ex.: obras exigidas pelo regulador/segurança).

Estruturas de pagamento

  • Up-front + earn-out (variável por KPIs: faturação, margem, retenção).

  • Escrow/retention 6–24 meses para cobrir passivos.


8) Riscos, litígios e como preveni-los

Riscos típicos

  • Passivos laborais ocultos (horas extra, ACT).

  • Obrigações de arrendamento não reveladas (obras, obras coercivas).

  • Conformidade sanitária/ambiental (coimas).

  • Software/licenças sem cessão válida (copyright, SaaS não transferível).

  • Dados pessoais sem base legal (RGPD).

Mitigação

  • Declarações e garantias detalhadas; indemnizações bem definidas.

  • Escrow proporcional ao risco; direito de compensação.

  • Condições suspensivas: aprovação do senhorio, licença emitida, financiamento obtido.

  • Seguro de R&W (representations & warranties) em transações maiores.


9) Boas práticas para 2026 — lista final

  • Avalie com método (múltiplos/DCF finito) e documente pressupostos.

  • Prepare licenças, contratos, pessoal e RGPD antes de abrir o dataroom.

  • Comunique formalmente a trabalhadores e senhorio com antecedência.

  • Simule impactos fiscais (IRC/IRS, IVA, Selo) e planeie o fecho.

  • Negocie cláusulas de não concorrência proporcionais e exequíveis.

  • Registe tudo (atas, comunicações, inventários) para prova futura.


Conclusão — Trespasse em 2026 exige método, transparência e execução

O trespasse continua a ser uma forma eficiente e segura de transferir negócios em funcionamento — desde que bem preparado. Em 2026, quem chega ao mercado com avaliação fundamentada, documentação impecável, plano laboral claro e simulações fiscais, vende mais depressa e melhor.

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